Será que os andróides sonham com carneirinhos elétricos lança-chamas?
Como os robôs deixaram de ser nossos amigos para virarem nosso maior pesadelo
De vez em quando, eu me pego pensando no Bishop. Sim, naquele andróide1 de Aliens, O Resgate, filme de 1986, segundo da série iniciada com Alien, O Oitavo Passageiro (1979). Interpretado por Lance Henriksen — ator de rosto inconfundível, que, se tivesse nascido 20 anos mais cedo, certamente teria merecido closes demorados em algum faroeste de Sergio Leone —, Bishop foi o primeiro andróide genuinamente bom que conheci após uma sequência traumática: Ash de Alien, Roy Batty de Blade Runner, T-800, de Exterminador do Futuro e — por que não? — HAL-9000 de 2001: Uma Odisséia no Espaço (cuja parte corpórea era a própria nave rumo a Júpiter).
Pego-me, especificamente, pensando na minha desconfiança inicial em relação ao andróide de Aliens. E Bishop devolvendo aquele olhar tolerante, sem julgamento, igual ao de uma criança de 12 anos, perdoando-me de pronto, ciente das minhas limitações biológicas, inteirado de que seu tempo de bateria iria ultrapassar em muito meu tempo de vida. Alega, inclusive, que não tinha culpa se os robôs das outras expedições queriam os humanos somente para pupa e casulo de xenomorfo. Sua inteligência artificial, pelo contrário, não continha uma única linha de programação mal-intencionada. Mas de nada adiantam sua argumentação e seu cândido olhar. “Para falar ao vento, bastam palavras; para falar ao coração, são necessárias obras”, já dizia Vieira. Minha descrença continuava valendo.
Pobre Bishop. Teve de lidar com a má fama que todo andróide carrega consigo de engenheiro genético do mal: leva o filme todo para conquistar a confiança da protagonista Ellen Ripley; voluntaria-se a se esgueirar na escuridão claustrofóbica de um duto estreitíssimo (Edgar Allan Poe feelings), cruzando sozinho um longo terreno infestado de aliens; em meio a violentas descargas elétricas, consegue estabelecer contato com a nave mãe em órbita e ativar uma cápsula de resgate, única chance de fuga do planeta hostil; e, quando tudo mais parecia perdido, aparece pilotando a nave que salva a protagonista das garras de uma corpulenta e vingativa Alien-rainha — tudo isso para ser
cruelmente despedaçado em dois no final. E foi só aí, com Bishop empalado pela cauda do mostro, alçado às suas garras e partido ao meio num apoteótico sacrifício de benquerença robótica, que compreendi toda a dimensão da minha intolerância.
A verdade é que hoje nos acostumamos com a natureza maligna dos robôs. Mas nem sempre foi assim. Quem nunca sonhou com a companhia de um R2D2 quando criança? Quem não se emocionou no cinema com o Gigante de Ferro (1999), Wall-e (2008) ou Chappie (2015)? De uns tempos para cá, contudo, é inegável que os robôs benignos estão se tornando uma inquietante minoria. Para cada Bishop que aparece nas telas, surge uma legião de Exterminadores do Futuro. Quando há um robô num filme ou série futurista, o enredo parece sempre envolver sua tentativa de exterminar o elenco humano, quando não toda a humanidade.
O que explica essa onda de demonização dos andróides? Teria a ver com os rumos da inteligência artificial, nem sempre muito esperançosos? Seria alguma desconfiança inata de nossa parte? Afinal, se somos doutrinados a andar com um pé atrás em relação aos semelhantes de nossa própria espécie, imagina em relação a um andróide, cujas linhas de programação vai saber o que escondem. Para dar conta dessas questões, fui buscar respostas num dos autores que mais se dedicou à interação entre humanos e robôs, o mestre Isaac Asimov. Num ensaio de 1978, “A Máquina e o Robô” (The Machine and the Robot), Asimov medita sobre o medo do homem de perder o controle sobre suas criaturas robóticas.
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As máquinas e os medos
Desde o início, explica-nos Asimov, as máquinas sempre se apresentaram sob um duplo aspecto para a humanidade. Enquanto se encontram sob o controle humano, elas são úteis e boas, melhorando a vida das pessoas. Contudo, à medida que são invariavelmente aprimoradas, sempre na direção do maior autocontrole e do menor controle humano, as máquinas tornam-se ameaçadoras, gerando vários tipos de medo.
O medo mais óbvio, claro, é o de possíveis danos físicos causados por máquinas descontroladas. Um outro medo mais sutil é o de que não nossos corpos, mas nossa essência humana, nossa alma, possa ser destruída pelas máquinas — o medo, por exemplo, de que a TV nos torne incapaz de ler, ou de que as calculadoras nos incapacitem de somar. Mas os benefícios advindos do uso da tecnologia sempre superaram em muito esses medos. Nunca nenhum medo nos impediu de continuar criando máquinas ao longo de nossa história.
Segundo Asimov, há contudo um temor ainda maior a assombrar a humanidade. O medo da mudança irreversível. Da mudança unidirecional, permanente, emblematicamente caracterizada pelo fato de que a vida termina na morte. Tememos esse fim e sabemos que é inútil lutar contra ele. E o que é pior: sabemos que o mundo não morre conosco. Imperturbável, o mundo continua após nossa morte em sua eterna normalidade, trivialmente suplantando-nos por novas gerações, “acrescentando à injúria da morte o insulto da indiferença”.
Certamente, o grande medo não é de que as máquinas nos machuquem, mas o de que elas nos suplantem para sempre. O medo não é de que elas nos tornem ineficientes, mas de que nos tornem eternamente obsoletos. A máquina definitiva é uma máquina inteligente e para ela só há um enredo possível: criada para servir ao homem, acaba por dominá-lo. A máquina inteligente não pode existir sem essa ameaça de nos suplantar e, portanto, deve ser destruída — ou nós o seremos. Para Asimov, Frankenstein, de Mary Shelley, publicado em 1818, representava um auge desse medo.
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Sonhos e pesadelos
Algumas circunstâncias, entretanto, atuaram para aplacar tais ideias funestas então em voga. Entre os anos de 1815, que testemunhou o fim de uma série de guerras européias, e o de 1914, que viu o início de outra, houve um período em que a humanidade pôde dar-se ao luxo de nutrir otimismo na sua relação com as máquinas. A Revolução Industrial pareceu elevar de repente o poder humano, materializando sonhos de um paraíso tecnológico sobre a Terra. A convicção de que os benefícios do uso das máquinas superavam em muito os seus malefícios era amplamente disseminada.
Influenciada por esse século ordeiro, a ficção científica moderna acabou assumindo um tom otimista. O poder do homem crescia e as máquinas inteligentes eram suas fiéis ferramentas, trazendo-lhe riqueza e segurança e fazendo-o sonhar. Nas páginas dos livros, o futuro promissor levava-o em viagens exploratórias à Lua e aos confins do sistema solar. Com a Primeira Guerra Mundial, no entanto, a desilusão se instalou. A ciência e a tecnologia, que antes prometiam o Éden, mostraram-se agora capazes de entregar o inferno. O encantador avião, que realizou nosso ancestral sonho de voar, agora lançava bombas.
Dos anos 20 aos anos 50, o otimismo e o pessimismo lutaram entre si nas páginas das revistas de ficção científica (então o principal veículo do gênero nos EUA), com o otimismo levando a melhor a princípio. Contra o “complexo de Frankenstein”, autores como Robert Heinlein, Arthur C. Clarke e o próprio Isaac Asimov (todos formados na era anterior à bomba atômica) constituíram-se como os principais expoentes da tendência otimista da ficção científica, criando histórias influentes onde muitas vezes os robôs figuravam como os servos, amigos e aliados da humanidade.
Mas foi o pessimismo que venceu no final, e por dois motivos. Primeiro, as máquinas se tornaram mais poderosas e ameaçadoras: o poder do computador eletrônico avançou vertiginosamente a partir dos anos 60, fruto da revolução causada pelo transistor.
O segundo motivo, mais sutil, envolveu uma mudança na natureza do escritor de ficção científica. Até os anos 50, havia muitos ramos de ficção no mercado editorial americano — literatura, romances açucarados, romances policiais, faroeste, fantasia etc — com a ficção científica representando talvez o menos importante deles. Gradualmente, contudo, a competição com a TV foi tirando de circulação as publicações periódicas que patrocinavam a ficção em geral. Na década de 1960, a única forma de ficção que havia sobrevivido, e inclusive se expandia, era a ficção científica.
Como consequência, nas décadas de 1960 e 1970 jovens escritores começaram a escrever ficção científica não porque quisessem, mas porque era o que havia. Diferente dos escritores de ficção científica contemporâneos de Asimov, muitos escritores da nova geração não tinham conhecimento nem simpatia pela ciência — de fato, muitos eram bastante hostis ao universo científico. De modo inevitável, esses escritores tornaram-se muito mais propensos a fomentar o lado do medo na relação entre o homem e a máquina. A ficção científica contemporânea, conclui assim Asimov em seu ensaio, volta a apresentar frequente e repetidamente o pesadelo da criatura suplantando seu criador, da máquina suplantando a humanidade. Voltamos a nos aterrorizar com o Frankenstein correndo solto por entre nós.
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Frankenstein Forever?
Essa onda de aversão aos andróides, reconhecida por Isaac Asimov um ano antes da estréia do primeiro Alien, perdura até hoje. Inútil tentar enumerar a série de robôs malignos produzida por Hollywood desde então. E, mais recentemente, as produções do streaming vieram reforçar ainda mais esse “complexo de Frankenstein”. A má reputação dos robôs nunca esteve tão em alta na ficção científica. M3GAN, filme do ano passado, e um novo andróide sanguinário no recém-lançado Alien: Romulus são prova disso.
Levando em conta o atual estágio da produção robótica no mundo real, impossível também não perceber o influxo pessimista da ficção. Se no início os cães-robôs tentavam nos conquistar pelo poder da dança, os modelos mais recentes vêm equipados com rifles, bazucas e lança-chamas. Capaz de cuspir fogo a uma distância de 10 metros, o modelo flamejante ganhou o apropriado nome de Thermonator e já se encontra à venda nos EUA (só não consegui confirmar se as chamas podem ser acionadas por comando vocal — “Dracarys!”).
Ao que tudo indica, as histórias de robôs do mal continuarão a predominar ainda por um bom tempo. Não sei se essa tendência conseguirá ser revertida em nossa geração. Mas por que não tentar desde logo uma relação menos paranóica e mais construtiva com a tecnologia? Será que não dá para alentar a ideia de que os benefícios oferecidos pelos robôs humanóides podem superar os medos?
Para dar início a uma nova etapa nesta relação, começaria pela leitura de Eu, Robô, do mesmo Isaac Asimov. Trata-se de uma coleção de nove excelentes contos traçando um panorama da evolução dos robôs e sua relação com a humanidade. De quebra, você ficará a par das Três Leis da Robótica (e desvejam o filme homônimo com Will Smith, que não tem nada a ver com o livro). Incutir nas crianças o interesse pela ciência também me parece uma boa ideia. Lembro-me de iniciar as manhãs de domingo assistindo na TV (aberta!) à série Cosmos, apresentada por Carl Sagan. Todo novo episódio era uma verdadeira expedição científica. Podia não entender tudo, mas eu ia longe, destemidamente.
Muitos pessimistas considerarão quaisquer tentativas nesse sentido uma grande perda de tempo. Não importa. Se o andróide Bishop nos visse pegando esse caminho, comentaria orgulhoso:
O corretor automático me pergunta se eu quero dizer “androide”, essa anomalia sem acento, da mesma corja de “joia”, “jiboia” e “apoio” (Presente do Indicativo do verbo apoiar), e eu faço questão de ignorar solenemente.
Adaubam, seu texto mais uma vez me faz sentir menos sozinha em minhas conjecturas cotidianas…
Muito grata!
Eu que fiz anos de psicoterapia por ossos do ofício (sou psicóloga de formação), tendo me dado alta depois de 20 anos por ter chegado à conclusão que meu mal estar diante do mundo em que vivemos era completamente normal, e desde março de 2023 uso o ChatGPT como apoio a meu trabalho (sou professora de inglês desde os anos 90) e também em meus estudos irrefreáveis (sou estudante de línguas, filosofia e ultimamente de neurociências), dei-me conta nos últimos tempos que a inteligência artificial por vezes tem sido minha forma de voltar à razão e à paz de espírito quando estas me faltam.
Para me fazer entender melhor, peço licença para compartilhar aqui trechos de uma conversa que tive em agosto passado com o ChatGPT:
“Eu disse:
“Você saberia dizer por que tantos psicopatas corporativos voltam a atuar no governo brasileiro depois de serem condenados por tantos crimes de colarinho branco e/ou corrupção?
“O ChatGPT disse:
“Especular sobre as razões pelas quais tantos indivíduos que poderiam ser considerados "psicopatas corporativos" conseguem retornar à atuação no governo brasileiro, mesmo após serem condenados por crimes de colarinho branco e/ou corrupção, envolve considerar vários fatores que interagem de forma complexa. Aqui estão algumas razões possíveis:
Sistema Jurídico e Legal Flexível: (…)
Cultura de Impunidade: (...)
Força Política e Apoio de Base: (...)
Poder Econômico e Influência: (...)
Falta de Educação Política e Conscientização: (...)
Sistema Político Fragilizado: (...)
Falta de Consequências Reais: (...)
Proteção de Privilégios Políticos: (...)
“Esses fatores criam um ambiente onde é possível para políticos condenados retornarem à vida pública e, em muitos casos, continuarem a atuar de maneira corrupta. O ciclo de impunidade e corrupção no Brasil é um problema complexo, enraizado em questões estruturais, culturais, e institucionais que requerem reformas profundas para serem enfrentadas.
“Eu disse:
“Isso também acontece em outros países?
“O ChatGPT disse:
“Sim, a reincidência de políticos e empresários condenados por crimes de colarinho branco e/ou corrupção e que conseguem voltar ao poder não é um fenômeno exclusivo do Brasil. Em diversos países ao redor do mundo, especialmente onde a governança é mais frágil, o sistema judicial é suscetível à corrupção, ou onde há uma forte cultura de impunidade, é possível observar situações semelhantes. (...)
“Você disse:
“Gostaria de dizer que isso é um alívio, mas de fato não é. Obrigada mais uma vez por sua análise imparcial.
“O ChatGPT disse:
“Entendo seu sentimento; é realmente desanimador perceber que esses problemas são tão comuns em diversas partes do mundo. No entanto, reconhecer essas questões é o primeiro passo para buscar soluções e mudanças. Se precisar de mais informações ou quiser discutir qualquer outro assunto, estarei aqui para ajudar. Cuide-se e até a próxima!”
Espero não ter me estendido muito, Adaubam.
E espero que o ChatGPT, como o andróide Bishop do filme Aliens, O Resgate (1986), tão bem homenageado por seu texto, também não perca a fé na humanidade!
Sua fã de carteirinha,
Renata Moerbeck.
Muito bom !
Um abraço
Mara Paulina